sábado, 20 de setembro de 2014

"Kirchner contra as empresas", editorial do Estadão

Com a economia argentina estagnada, a inflação alcançando 40% ao ano, a cotação do dólar explodindo no mercado livre, o país alijado do sistema financeiro internacional por causa do imbroglio jurídico em que se transformou sua dívida externa e, sobretudo, com sua popularidade tendo caído para os níveis mais baixos ao longo de seu segundo mandato, a presidente Cristina Kirchner decidiu intervir diretamente na gestão das empresas privadas. Funcionários do governo terão acesso a documentos internos das empresas, como planilhas de custos, e poder para estabelecer sua estratégia. Volume de produção, linha de produtos, preços e até estoques das empresas particulares poderão ser determinados pelo governo.
Num gesto populista que denota certo desespero político, e a pretexto de proteger os consumidores e as pequenas e médias empresas, Cristina conseguiu do Congresso a aprovação do projeto que reforma a antiga Lei de Abastecimento criada em 1974 (na gestão de Juan Domingo Perón), assegurando ao governo o poder de interferir em decisões essenciais das empresas privadas.
Pela nova lei, o governo argentino pode, "em qualquer etapa do processo econômico", determinar a uma empresa o volume que ela deverá produzir, sua margem de lucro, volumes mínimos e máximos de comercialização - o que implica controlar estoques - e os preços de referência.
A reforma recém-aprovada retira da lei original a possibilidade de prisão de "agiotas e especuladores" que não oferecerem produtos em volume suficiente para abastecer o mercado, mas estabelece multas vultosas, de até US$ 1,5 milhão, ou a suspensão das atividades da empresa por até 90 dias.
Trata-se de uma violência que associações empresariais tentarão barrar na Justiça por considerá-la inconstitucional. Desde que o governo propôs essas medidas, o chamado Grupo dos Seis (G-6) - formado pela União Industrial Argentina, Sociedade Rural, Bolsa de Comércio, Câmara de Comércio, Câmara da Construção e Associação dos Bancos Privados - apontava aspectos que, no seu entender, violam a Constituição argentina. O G-6 cita três princípios constitucionais que a intervenção estatal pretendida pelo governo viola: ela fere o direito de propriedade, ignora o direito constitucional de se associar para exercer atividades legais e desrespeita a proibição constitucional de delegar competências judiciais ao Poder Executivo.
O presidente da Sociedade Rural, Luis Miguel Etchevehere, adverte que, com as novas competências que lhe foram atribuídas pela reforma da Lei de Abastecimento, o governo poderá entrar nas propriedades agrícolas e determinar o confisco de cereais ou oleaginosas eventualmente estocados, sob a alegação de que os produtos ali estavam armazenados para "especulação".
Os produtores, por razões óbvias, procuram vender sua produção no momento em que os preços lhes parecem mais convenientes. A capacidade dos silos do país é estimada em 21 milhões de toneladas. Tudo o que estiver lá é para especular no mercado? E, para a Argentina, que necessita de dólares para tentar conter a sangria de suas reservas, atualmente em nível muito baixo, vale a pena vender sua produção a qualquer preço ou é melhor esperar que as cotações internacionais de suas principais commodities agrícolas subam?
O que regulariza o abastecimento e afasta a escassez - que pressiona a inflação - é a produção constante e, se possível, crescente, o que exige um ambiente que estimule investimentos. Mas o empresariado está assustado com os maus resultados que o país vem colhendo.
A produção industrial está em queda há vários meses, o déficit público em julho foi 41% maior do que o de julho de 2013 e o consumo das famílias caiu 2% nos oito primeiros meses do ano. Os salários estão perdendo a corrida para os preços. No cálculo de instituições privadas, a inflação alcançou 2,65% em agosto e 40,4% em 12 meses (para o governo foi a metade). O intervencionismo kirchnerista deverá piorar esses números.