sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Ufa! A Copa terá Messi!

Sérgio Garcia - Epoca

Lionel Messi,jogador (Foto:  Diego Merino)

A bola vem de um chutão da defesa e cai na intermediária. Com o peito, Lionel Messi a subjuga com facilidade no gramado e inicia aquela arrancada que conhecemos. Dá cinco toques curtos, rápidos, tira dois zagueiros da jogada e, já dentro da área, percebe o goleiro adiantado. Chuta a bola entre o travessão e os braços esticados do coitado, que faz um esforço inútil para alcançá-la. São 17 minutos do segundo tempo e Messi decreta 3 a 1 da Argentina sobre o Equador. Três gols dele. A comemoração ensandecida que se seguiu, empilhando titulares, reservas e comissão técnica, foi um merecido desafogo. Pouco mais de uma hora antes, naquela noite de terça-feira (10), a seleção argentina entrava em campo na última rodada das Eliminatórias Sul-Americanas sob pressão. Precisava da vitória e de uma combinação de resultados para se classificar diretamente para a Copa do Mundo de 2018. Talvez tivesse de passar pelo vexame de disputar a repescagem, como em 1994. A depender dos resultados, podia ficar de fora. Mas aconteceu o melhor. Messi resolveu.
No vestiário, o herói da noite parecia possuído. Messi abandonou seu notório comedimento, subiu numa bancada e se juntou aos companheiros em cânticos que xingavam a imprensa e enalteciam o fanatismo dos “hinchas”, os apaixonados torcedores argentinos. Merecia. Realizara uma proeza digna de Romário, que fez dois gols na vitória contra o Uruguai, em 1993, e selou a classificação do Brasil para a Copa de 1994. Quem aprecia futebol – e não somente os “hinchas” argentinos – se sente aliviado. A atuação extraordinária do camisa 10 evitou algo inconcebível, mas factível até então: um Mundial sem Messi. Para felicidade (quase) geral, veremos em ação na Rússia a santíssima trindade da bola. Além de Messi, o português Cristiano Ronaldo, o antagonista com quem há dez anos ele divide o título de Melhor Jogador do Mundo, e Neymar, o penetra nesse olimpo, que felicitou seu ex-colega de Barcelona pela classificação.
Após a partida, os jogadores argentinos quebraram o gelo com a imprensa do país, que, por sua vez, louvou o Messi da seleção como jamais havia feito. Messias, gênio, descomunal foram alguns dos termos destacados nas manchetes. O diário Olé pareceu redundante, mas havia uma mensagem embutida em sua capa. “Messi é argentino”, em letras graúdas, lembrava que aquele camisa 10 sempre decisivo no Barcelona fez diferença na seleção. É uma guinada. Os argentinos sempre tiveram sentimentos conflitantes com Messi. Era como se existissem dois dele. Um é o orgulho nacional pelo que faz no Barça, onde é o símbolo de um time de sonhos. O outro sentimento é de desconfiança. Quando veste aquela bonita camisa alviceleste, a magia se dissipa e ele vira um fiasco. As estatísticas, numa leitura superficial, podem dar razão aos críticos. Mas os números do craque no Barcelona são sobrenaturais, o que torna qualquer comparação uma covardia. Messi acumula 30 títulos pelo clube ante apenas um pela seleção, a medalha de ouro na Olimpíada de 2008. É o maior artilheiro da história tanto do Barcelona quanto da seleção, mas com aproveitamentos díspares. Faz em média quase um gol por partida no clube (594/521), enquanto pela Argentina são necessários dois jogos para marcar (122/61).
Pesa contra Messi a falta de identificação com a pátria, por ter feito toda a carreira fora da Argentina, pois se mudou para a Catalunha aos 13 anos. É óbvio que o Barcelona deu mais recursos a Messi que a seleção de seu país, em termos de companheiros e técnicos. Como agravante, o atual camisa 10 ainda vive sob o espectro de uma divindade cultuada por seus compatriotas. Está sempre sendo espelhado a Diego Armando Maradona, corpo e alma da seleção argentina que conquistou a Copa de 1986. Desanimado com os questionamentos e com seus próprios resultados, Leo chegou a anunciar o fim de seu ciclo na seleção, após o vice-campeonato na Copa América no ano passado. Até Maradona pediu que os argentinos parassem de importunar Messi com a tal comparação descabida – afinal, o futebol, como a arte, não comporta comparações, rankings entre gênios. É bobagem, perda de tempo. Para sorte da Argentina, em menos de dois meses, Messi se acalmou e reconsiderou a decisão. Fez o que fez.
Melhor deixar de lado as comparações e tentar outra coisa, como entender o que faz de Messi um extraterrestre em campo, o que ele faz que outros não fazem. “Ele corre em alta velocidade com a bola próxima, colada no pé, o que é algo dificílimo. E ainda é capaz de mudar de direção para qualquer lado, sem desacelerar, e em cima do marcador, o que deixa o adversário sem reação”, afirma o ex-jogador Belletti, que jogou com Messi no Barcelona. “Messi tem um manancial de jogadas muito maior que os demais jogadores e usa a técnica sempre de forma objetiva, em direção ao gol. Uma arrancada dele sempre termina em chute ou passe para gol.” Messi é chamado de “gênio” por colegas de profissão, como Daniel Alves, sucessor de Belletti na lateral-direita do Barcelona. Recentemente, Daniel relatou um episódio. Em um treino sério, intenso, naquele Barcelona cheio de grandes jogadores, Messi fazia coisas que “desafiavam a lógica”. Passava pelos colegas, atravessava a defesa e arrematava como artilheiro. Mas Daniel se assustou mesmo quando viu que as duas chuteiras de Messi estavam desamarradas, como se ele estivesse numa brincadeira.
Messi corre em alta velocidade com a bola colada ao pé, o que é dificílimo, e ainda consegue mudar de direção para qualquer lado
Em oposição a seu estilo radiante de jogar, Messi leva uma vida trivial fora do campo. É casado com Antonella Roccuzzo, namorada desde os tempos de Rosário, onde cresceu, com quem tem dois filhos pequenos, Thiago e Mateo. Longe da bola, Messi se transforma em figura apagada, inexpressiva, unidimensional. É inimaginável uma rivalidade com Cristiano Ronaldo, um símbolo sexual. Tampouco goza do apetite festeiro de Neymar. Talvez só as tatuagens quebrem um pouco o habitual aspecto de monotonia. São sete desenhos ao todo. No mais, pouco fala e aparece, e jamais expressa opinião. Abriu uma exceção, ainda assim de apenas 15 minutos, para conversar com o jornalista Leonardo Faccio. Autor de uma biografia sobre o craque, Faccio chegou a uma conclusão óbvia: Messi se expressa por meio da bola.
Em uma rara entrevista, depois do jogo de terça-feira (10), Messi reconheceu a ansiedade que a seleção argentina viveu. O triunfo retirou toneladas de suas costas e permitiu que ganhasse a derradeira oportunidade de ser protagonista do título que todo jogador almeja. Na Copa da Rússia, ele estará com 31 anos. “O mais impressionante é como ele consegue manter o altíssimo nível por tanto tempo. Messi tem um anseio inesgotável por conquistas, e nisso a concorrência com Cristiano Ronaldo o estimula”, diz Belletti. “Muita gente exalta que o Cristiano se dedica muito à parte física, mas com o Messi é a mesma coisa. A intensidade de treino dele sempre foi absurda”, diz Belletti. “Messi não deve um Mundial para a Argentina. O futebol é que deve um Mundial a Messi”, afirmou Jorge Sampaoli, técnico da seleção argentina. Sorte de nós, os mortais comuns, que poderemos ver outra Copa do Mundo com Lionel Messi.

Messi e seus companheiros comemoram a classificação para a Copa (Foto:  Edgard Garrido/REUTERS)