quinta-feira, 23 de novembro de 2017

"Ou envelheci ou o mundo se tornou complexo", diz Gabeira, tema de filme


Fátima Sá - O Globo


Moacyr Goés levou um ano para convencer Fernando Gabeira. Os dois se conhecem desde 2008, quando o diretor foi convidado a tocar a campanha de TV do jornalista para a prefeitura do Rio. Na época, Eduardo Paes acabou eleito. Em 2010, Góes voltou a dirigir a campanha de TV de Gabeira ao governo do estado. Deu Sérgio Cabral. Mas um não perdeu o outro de vista. O ex-deputado federal deixou Brasília, mergulhou no Brasil, e Góes seguiu de olho. Um dia, fez a proposta. E um ano depois, recebeu o sim. Hoje, quando “Gabeira”, o documentário, chega aos cinemas, Gabeira, o homem, anda em Mambai, na divisa de Goiás com a Bahia. Pesquisa o Refúgio de Vida Silvestre das Veredas do Oeste Baiano para seu programa semanal na GloboNews.

— Ele ainda está no meio do mundo — diz Moacyr Góes.

Aos 76 anos, o meio do mundo de Fernando Gabeira pode ser o refúgio na Bahia, a Reserva Nacional do Cobre, no Amapá, ou a cidade de Mariana depois do desastre da Samarco.

— Tenho viajado de ponta a ponta. A ideia que tenho do país é transmitida por gente simples que trabalha duro. Em relação ao passado, graças aos novos meios, tenho sentido um nível maior de informação sobre o país. Sinto um desejo difuso de mudança, misturado às vezes a um certo desânimo, exceto talvez em quem já tem candidato a presidente — conta, por e-mail, enquanto viaja sozinho com o motorista Mauricio de Souza, que fez curso de áudio e também capta o som.

O restante do trabalho na rua é feito pelo próprio jornalista-apresentador.

— Parto sempre no meio da semana e chego ao Rio no sábado. No domingo, escrevo o programa, e ele é editado com as indicações que sugiro. No caminho, escrevo a coluna do GLOBO e um artigo quinzenal para o “Estadão”. Uso as viagens de avião para ler, assim como as horas vagas no Rio para estudar um pouco mais. Nisso tudo, tento encontrar tempo para nadar e andar de bicicleta.


DA INFÂNCIA ÀS DESILUSÕES

No filme, Gabeira tem sua vida contada desde a infância em Juiz de Fora, quando descobriu que não levava jeito para a vida doméstica e barbarizava na escola (a prima Leda Nagle entrega), até o rompimento com o PT e as desilusões políticas. Além de muitas imagens de época, a história é pontuada por depoimentos. Estão lá falas do próprio personagem, de amigos como Ferreira Gullar (talvez a última entrevista filmada do poeta, morto em 2016) e Caetano Veloso, além de um comentário do ex-embaixador americano Charles Elbrick (morto em 1983), cujo sequestro em 1969 rendeu nove anos de exílio ao então guerrilheiro Gabeira.

Foi justamente no exílio, ao conhecer outras realidades, que o jornalista-militante se deu conta de que os direitos civis, já muito presentes na Europa, ainda não eram pauta da esquerda brasileira.

— A ficha não cai de uma vez — diz ele. — Vários fatores se combinam: o conhecimento do chamado socialismo real, o fracasso da resistência armada, a insatisfação com a teoria marxista e a incursão pela antropologia. A influência e o peso das mulheres são muito nítidos no norte da Europa. Infelizmente, essas novas lutas acabaram tomando um sentido que nem sempre leva ao crescimento mas, ao contrário, a uma reação forte de pessoas que se sentem inseguras diante das mudanças. Penso muito na vitória do Trump nos EUA e sempre me pergunto se foi mérito dele, ou se o campo chamado liberal não cometeu erros que poderiam ser evitáveis, o maior deles a própria arrogância.

De volta ao Brasil com a anistia, Gabeira surgiu, portanto, como o militante libertário, defensor da sexualidade livre, dos direitos civis, da ecologia. Daí o frenesi que causou ao surgir de tanga de crochê na praia em 1980, num dos mais conhecidos episódios que são lembrados no filme.

— Não imaginei causar polêmica e, quando percebi que estavam jogando amendoim, deixei de ir à praia — ele conta.

As filhas, Tami e Maya, alguns amigos, os casamentos (hoje ele é casado com Neila Tavares), a autoironia ao falar da campanha para a presidência, em 1989, também estão lá, mas não espere por muita intimidade. Gabeira é bastante reservado.

— Eu quis fazer um filme sobre o pensamento dele, para apresentar às novas gerações. E para lembrar às antigas também. Em tempos como os atuais, acho importante que se olhe para alguém assim. Um homem público, que não se prende a nada material — afirma Moacyr Góes, que diz ter material suficiente para um segundo filme ainda.

TRANSPARÊNCIA E ERROS PÚBLICOS

O documentário louva a atuação de Gabeira no Congresso, destacando episódios como seus lendários discursos contra Severino Cavalcanti e Renan Calheiros. Mas não deixa de fora um momento desabonador, quando o então deputado federal confessou ter sido um dos que usaram em benefício de terceiros a cota de passagens aéreas a que tinha direito como parlamentar.

— Meus erros políticos são públicos — ele diz. — Aliás esse é o tema central da responsabilidade com o outro. Passei anos escrevendo e falando sobre os erros da luta armada. Da mesma forma, prestei conta dos meus erros durante os 16 anos de vida política.

Ainda assim, Gabeira jura que não tem vontade de voltar à Câmara.

— Era muito duro trabalhar lá. Você não vê a noite chegando. O prédio, com todo o respeito pelo Niemeyer, não é para mim um lugar ideal de trabalho. Além disso, há as pessoas. Com raras exceções, as mesmas de sempre estão piores e chegaram outras que são também desalentadoras.

Em tempos polarizados, onde está Gabeira?

— No meu entender, as pesquisas revelam duas posições nostálgicas: a volta do PT e um certo saudosismo do período militar. Se disser que sou hoje uma pessoa que apoiaria uma posição de centro, estou seguro de que provocaria riso nos radicais. Afinal, associam centro com covardia. No entanto, nas trágicas condições em que meteram o Brasil, só uma força disposta a unir todos em torno do essencial poderia realizar a tarefa de reconstrução. Minha preocupação é encontrar o caminho para que pessoas diferentes cheguem a um denominador comum. Enfim, ou eu envelheci ou o mundo se tornou mais complexo do que supunham meus sonhos de juventude.