domingo, 10 de dezembro de 2017

"Cultura e corrupção", por José Padilha

É razoável esperar que um PM do Rio, que recebe um salário mensal de US$ 400, não seja empurrado para a corrupção?


A cultura de uma organização, o conjunto de práticas e comportamentos que seus membros exibem de forma recorrente, tem dois componentes: um formal, balizado pelas regras e procedimentos expressos nos seus documentos, e outro informal, composto por práticas que não estão escritas e muitas vezes (mas nem sempre) vão contra o que está formalizado. Exemplo: de um ponto de vista formal, quando um policial militar prende um traficante, deve levá-lo a uma delegacia. Na prática, boa parte dos policiais militares do Rio que trabalham diretamente na repressão ao tráfico de drogas negociam informalmente com os traficantes: ou você me corrompe, ou te levo preso... O primeiro comportamento faz parte da cultura formal da PM; o segundo, da sua cultura informal.

Durante a realização de “Ônibus 174”, “Tropa de elite” e “Tropa de elite 2”, entrei em contato com inúmeros policiais militares e estudiosos da segurança pública do Rio. Quando indaguei deles qual seria o percentual dos PMs que praticaram ou deixaram de denunciar algum tipo de corrupção, as estimativas informais que recebi ficaram na casa dos 65%. Ora, se é verdade que mais de 30 mil dos 45 mil policiais militares do estado estão envolvidos, temos um problema relativo à qualidade das pessoas que ingressam na PM, ou temos um problema relativo à organização em si?

No primeiro “Tropa de Elite” defendi a tese de que o problema da PM era, fundamentalmente, organizacional. Uma das convicções que formei foi a seguinte: a PM do RJ estava (e ainda está) estruturada de forma tão surreal do ponto de vista formal que era inevitável que boa parte de seus membros desenvolvesse uma cultura informal de violência e de corrupção. Por exemplo: é razoável esperar que pessoas que têm a função de enfrentar, dia após dia, criminosos extremamente violentos e fortemente armados, recebam um salário mensal de US$ 400? Ou será que o razoável é imaginar que a fragilidade econômica destas pessoas, somada à violência recorrente a que estão submetidas e ao contato diário com criminosos, vai empurrá-las para corrupção?

De forma geral, organizações que têm estruturas formais incompatíveis com a natureza biológica e a realidade econômica e social de seus membros tendem a desenvolver culturas informais que contrariam as suas normas. (Pense na pedofilia e na igreja católica...) A única forma de se impedir que isso aconteça é a adoção de um algum sistema de controle externo à instituição, que tenha o poder de punir exemplarmente os seus membros. Na Polícia Militar do Rio de Janeiro este sistema não existe, posto que seus homens e mulheres são supervisionados pela corregedoria da própria. Não foi à toa, portanto, que a PM desenvolveu uma cultura informal de corrupção que se estende muito além do tráfico de drogas. Há corrupção no trânsito, há corrupção na relação com o comércio informal, há corrupção com vans, com clínicas de aborto, com milicianos, com jogos de azar...

Pois bem, a tese que tenho defendido neste espaço (me refiro a ela como a tese do mecanismo) e que enuncio vagamente nos planos finais do “Tropa de Elite 2” pode ser expressa da seguinte forma: o que acontece na PM do Rio acontece em quase todas as organizações do estado brasileiro, em nível municipal, estadual e federal; no Legislativo, no Executivo e no Judiciário. Em outras palavras: a grande maioria das organizações públicas do nosso país desenvolve culturas organizacionais informais que trivializam a corrupção e a transformam em hábito.

A pergunta que fica é: posto que cada organização tem a sua própria lógica interna, e que estas lógicas não são iguais, porque será que o fenômeno do “mecanismo” é tão generalizado no setor público do nosso país? Por que será que, no Brasil, o mecanismo tem o tamanho do Estado?