sábado, 9 de dezembro de 2017

João Roberto Kelly: "Essa bicha não é minha"

O Globo

Conto passagens de minha vida artística com os travestis para frisar o carinho e a admiração que tenho por eles. Infelizmente, hoje em dia, pouca gente sabe disso


Mil novecentos e sessenta e quatro foi um ano de glória para mim. Ganhei o carnaval com “Cabeleira do Zezé” (sátira à juventude rebelde da época com suas roupas extravagantes e suas cabeleiras); musiquei na televisão os programas “Times Square” e “Praça Onze”; e, na boate Sótão, na Galeria Alaska, o inesquecível show de travestis “Les Girls”. Ali surgiram para o estrelato as talentosas Rogéria, Divina Valéria, Jane di Castro e outras transformistas que brilharam mais tarde em renomados palcos internacionais.

“Les Girls” foi sucesso total, durante muitos anos, com elencos variados, dentro e fora do Brasil. Uma curiosidade. Um poderoso diretor de TV, quando soube que eu estava musicando “Les Girls”, fuzilou: “Kelly, você ganha aqui um bom salário e não tem nada que musicar um show de viados lá fora!” Respondi na lata: “Conheci o elenco e ali só encontrei artista de alta qualidade. Acho a sua frase muito infeliz.”

Conto estas passagens de minha vida artística com os travestis para frisar o carinho e a admiração que tenho por eles. Infelizmente, hoje em dia, pouca gente sabe disso, ou finge que não sabe, quando solicitam a blocos e bandas para excluírem a minha marchinha do carnaval de 2018, por afirmarem esta ser homofóbica ou preconceituosa. Imagine. Que bobeira!

Nunca pensei que uma brincadeira de carnaval gerasse uma polêmica tão grande. Desta maneira, aproveito este espaço para dizer que, se ofendi alguém, não foi intencional e peço desculpas.

Voltando para a “Cabeleira do Zezé”, quero esclarecer que foram os foliões que realizaram o infeliz acréscimo à minha composição, entre a primeira e a segunda parte, quando acontece a pausa musical, com um grito: “Bicha”. Sem querer fazer piada, afirmo categoricamente: “Essa bicha não é minha!”

Por outro lado, não pode o criador ser penalizado por modificações no sentido de sua obra. Inclusive, as preferências do garçom que homenageei, o José Antônio, que era um seguidor dos Beatles e do James Dean. Paquerador emérito no extinto Bar São Jorge, da Avenida Prado Júnior.

A onda puritana que está invadindo a cultura brasileira tem gerado equívocos sérios. Imagino que pode chegar um dia quando os falsos moralistas solicitem a retirada de todos os palavrões da obra imortal de um Jorge Amado. Também, podem solicitar colocarem tapa-sexo nos corpos nus expostos nos quadros do Museu Nacional de Belas Artes.

Temos que estar atentos para evitar censura prévia, algo que pode diminuir a originalidade do carnaval carioca.

Que Deus guarde para sempre a alma colorida da minha querida Rogéria, que, como pessoa e estrela, é uma síntese do meu pensamento sobre a atualíssima questão de gênero, de desigualdade ou de cor. Todos somos iguais; a arte não discrimina sexo, dinheiro ou posição social.

João Roberto Kelly é maestro e compositor