segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Advogado da Petrobrás defenderá em julgamento de Lula fim de ‘políticos profissionais’ em cargos em comissão

Ricardo Brandt, enviado especial a Porto Alegre

    Rene Dotti, advogado da Petrobrás. FOTO Denis Ferreira Netto./ESTADAO
O criminalista René Ariel Dotti, assistente de acusação do Ministério Público contratado pela Petrobrás para os processos da Operação Lava Jato, vai defender nesta quarta-feira, 24, no julgamento de segundo grau da condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Porto Alegre, a necessidade do fim dos “políticos profissionais” em cargos em comissão em estatais e no governo como forma de combate à corrupção.
“Nas mazelas da administração pública em todos os níveis, a generalidade dos ‘cargos em comissão’ são portas abertas para os malsinados cabides de emprego para a prestação de serviços estranhos à função, como é rotineiro em gabinetes de parlamentares”, afirmou Dotti, que fará a segunda sustentação oral do julgamento desta quarta-feira, no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, em Porto Alegre. “O fenômeno tornou-se rotineiro na cultura política de aparelhamento do Estado, onde não há desempregados.”
O criminalista acompanhará parecer do Ministério Público Federal, que pede manutenção da condenação do ex-presidente pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, no processo do tríplex do Guarujá, aumento de pena – inicialmente estipulada pelo juiz federal Sérgio Moro em 9 anos e 6 meses de prisão -, e pedirá que os recursos recuperados pela Justiça sejam transferidos para os cofres da Petrobrás – elementos que constam no documento já entregue no processo.
Em entrevista ao Estadão, o advogado e professor de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná afirmou que ampliará o debate: “A sociedade civil organizada poderá manifestar-se contra a escolha de políticos profissionais para assunção de cargos que lhes permita manter a cultura deletéria da distribuição política de funções públicas. Pretendo repercutir esta tese em minha exposição durante o julgamento do dia 24. A população certamente aprovará”.
Dotti cita em cada frase que constrói um ou dois artigos, incisos e dispositivos da Constituição e do Código de Processo Penal (CPP) – esse ele ajudou a redigir sua parte geral -, seja ela dita no ambiente dos tribunais, em um café com um amigo ou em uma entrevista com um jornalista. Paranaense, com 83 anos, o advogado quase não faz mais audiências – tem uma equipe grande e capacitada em seu escritório, em Curitiba -, mas nesta quarta-feira irá pessoalmente a Porto Alegre.
“Há determinados acontecimentos no mundo social que permitem a formação de uma consciência coletiva para a proteção de determinados bens e interesses jurídicos”. Listou a proibição de fumar lugares públicos fechados, a proteção do consumidor, com os Procons, a Lei Maria da Penha, o Estatuto do Idoso e a Lei da Ficha Limpa. Por isso, levará o debate no tribunal. “Urge a regulamentação com a clara definição das condições para preenchimento dos cargos em comissão, eufemismo para designar cabos eleitorais e outros prestadores de serviços pessoais.”
Em quatro anos de Lava Jato, MPF, Polícia Federal e Receita provaram que o loteamento de cargos estratégicos na Petrobrás durante o governo Lula serviram como forma de cooptar apoio dos partidos da base e aliados e de arrecadar propinas para as campanhas e enriquecimento – um rombo estimado em mais de R$ 40 bilhões até aqui. Por meio desse fatiamento, PT, PMDB e PP controlavam áreas com maior volume de recursos na estatal, por meio das quais faziam acordo com empreiteiras e lobistas.
Notório, não só pelos livros jurídicos publicados e por sua história de atuação como defensor de perseguidos pela ditadura, mas também recentemente por ter repreendido o advogado de defesa de Lula, Cristiano Zanin Martins, durante audiência do ex-presidente com o juiz Sérgio Moro, em Curitiba, em 2017, ao ver o colega “desrespeitar” o magistrado, Dotti afirmou nesta entrevista ao Estadão, às vésperas do julgamento, que não existe uma “guerra jurídica” nos processos da Lava Jato como alega o petista, mas “sim um debate nacional sobre a operação  que aponta o maior escândalo financeiro na história do Brasil” e refutou a tese de perseguição e cerceamento de defesa. “Se houvesse (…) haveria a concessão de habeas corpus pelo menos em um dos 3 tribunais acima do juiz.”
Para ele, a celeridade no julgamento, atacada por aliados e pela defesa de Lula, está relacionada à prioridade determinada pela lei – pelo petista ter mais de 60 anos – e pelo “interesse público” para “definir a situação jurídico-eleitoral” de um ex-presidente que está em campanha “em muitos lugares do País como candidato à Presidência.”
Dotti fará sustentação oral dos pedidos da Petrobrás como assistente da acusação logo após a manifestação do procurador regional da República, Maurício Gotardo Gerum – seu ex-aluno da Universidade Federal do Paraná. Questionado sobre qual sua expectativa sobre um placar dos votos dos desembargadores Leandro Paulsen, João Pedro Gebran Neto e Victor Laus, Dotti respondeu: “Permita-me a omissão. A minha longa carreira na advocacia ensinou-me que mesmo nas causas onde há mínimo litígio, a decisão judicial sempre é uma incógnita. A percepção do problema e a perspectiva de sua solução saem de minha cabeça para pousar em outra”.
LEIA A ÍNTEGRA DA ENTREVISTA:
Estado: Qual o papel da assistência da acusação no processo?
René Ariel Dotti: O chamado ‘assistente do Ministério Público’ é a pessoa física ou jurídica que é vítima, ofendido ou lesado, do crime e colabora para a acusação do réu. Em caso de homicídio, a assistente é a pessoa que representa legalmente a vítima. O Código de Processo Penal (CPP) no art. 271 dispõe que o AMP ‘será permitido propor meios de prova, requerer perguntas às testemunhas, aditar o libelo e os articulados, participar do debate oral e arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público, ou por ele próprio, (…).’
Estadão: E qual a atuação o sr. terá na revisão da sentença de Lula?
Dotti: No presente recurso de apelação, em que é apelante o Ministério Público Federal e apelados, Luiz Inácio Lula da Silva e outros, a Petrobrás, como assistente do Ministério Público, acompanhará, embora com argumentos próprios, os pedidos a serem feitos pelo MPF aos desembargadores que compõem a 8.ª Turma do Tribunal. Além de requerer a confirmação da sentença do juiz Sérgio Moro, o procurador da República sustentará, principalmente, a necessidade de aumentar as penas aplicadas aos réus.
Estadão: No documento entregue ao TRF-4 o sr. defende a reversão dos valores para a Petrobrás?
Dotti: Nas chamadas ‘alegações finais’, eu estou requerendo que o Tribunal confirme a sentença de primeiro grau. O juiz decidiu que o produto do confisco criminal , bem como o valor mínimo para a reparação dos danos deve reverter à Petrobrás. O fundamento é o art. 91, inciso II, a) do Código Penal: ‘São efeitos da condenação: II – a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso’.
Estadão: Há provas suficientes para manter Lula condenado e nem provas de ligação do triplex com a corrupção na Petrobrás? O sr. concorda?
Dotti: Como é de conhecimento geral a defesa do ex-Presidente insiste em afirmar que não existe prova suficiente para condenar o seu cliente. Na verdade, porém, o convencimento do juiz criminal – em qualquer tipo de processo e de crime – é formado pela livre apreciação da prova produzida no contraditório judicial, como prevê o Código Penal, art. 155.
Sim, existem não somente as provas diretas, como depoimentos, documentos, exames, mensagens eletrônicas, reformas no apartamento tríplex 164 A- Edifício Salinas, Condomínio Solaris, cuja propriedade de fato era do ex-presidente e sua esposa, que demonstram a existência do crime de corrupção passiva, ou seja, obtenção indevida de vantagem decorrente em parte dos contratos do Consórcio CONEST/RNEST, celebrados com a Petrobrás em razão do cargo de presidente. Há, também, provas indiretas, indícios, para a condenação.
Há prova mais que suficiente do crime de lavagem de dinheiro pelas condutas de ocultação e dissimulação, inclusive com as reformas do apartamento: fraudes documentais em documentos de aquisição de imóveis, manutenção do imóvel em nome da OAS Empreendimentos, etc. O crime está previsto no art. 1.º, caput, inciso V da Lei  nº 9.613/1998, ‘envolvendo a ocultação e dissimulação  da titularidade do apartamento 164-A, triplex, e do beneficiário das reformas realizadas’. Está no trecho n.º 944, letra b, da sentença do juiz Sérgio Moro.
Entre os meios para o convencimento do juiz sobre a existência e autoria de crimes é a existência de indícios.  Segundo o art. 239 do CPP: ‘Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias’. Existem, por acaso, indícios mais que evidentes da propriedade de fato do apartamento que as visitas feitas ao imóvel por ele e sua falecida esposa? As fotos ilustram muitas reportagens. Algumas até com o homem da OAS.
Estadão: A defesa alega que Lula é vítima de uma guerra jurídica? Há fundamentos?
Dotti: Não existe uma ‘guerra jurídica’ e sim um debate nacional sobre a operação  que aponta o maior escândalo financeiro na história do Brasil.
Estadão: A defesa alega que Lula tem tido seus direitos tolhidos, que é vítima de cerceamento, que é induzido pelo juízo. O sr. vê o ex-presidente como vítima nesse processo?
Dotti: O imenso número de recursos manifestados contra as decisões do juiz Sérgio Moro, a abertura, pelo ex-Presidente, de processos administrativos, ação penal e outros expedientes contra o magistrado apontam em sentido contrário.  As entrevistas e alegações nos meios de comunicação e o extraordinário empenho público do defensor demonstram que se houvesse restrição ou cerceamento na ampla defesa garantida pela Constituição, haveria a concessão de habeas corpus pelo menos em um dos 3 tribunais acima do juiz original da causa.
Estadão: Houve protestos da defesa e dos apoiadores de Lula de que o TRF-4 acelerou o julgamento da apelação. São seis meses entre a sentença e o julgamento da revisão. Há algo de errado com esse prazo?
Dotti: Esse recurso tem dois motivos fundamentais para não se arrastar no tempo.
O primeiro decorre da idade do ex-presidente. Tendo ele mais de 60 a preferência de julgamento sobre outros processos resulta de expressa determinação da lei n.º 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), art. 71: ‘É assegurada prioridade na tramitação dos processos  e procedimentos e na execução de atos e diligências judiciais em eu figure como parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a 60 anos, em qualquer instância’.
O segundo motivo é o interesse público em definir a situação jurídico-eleitoral do ex-presidente. Com efeito ele está, há vários meses, fazendo campanha em muitos lugares do País como candidato à Presidência da República.
Estadão: O sr. acha que após a Lava Jato, haverá menos corrupção nas estatais?
Dotti: A Constituição Federal, em seu artigo 37, inciso II, diz ‘A investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração’.
E o inciso V do mesmo artigo estabelece: ‘V – as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento’.
Porém, o inciso V nunca foi regulamentado.
Urge a regulamentação com a clara definição das condições para preenchimento dos cargos em comissão, eufemismo para designar cabos eleitorais e outros prestadores de serviços pessoais.
Também é preciso implementar a regra do art. 41, III da Constituição Federal para estabelecer como obrigação,  sancionada em sua falta como crime contra a Administração Pública, o procedimento de avaliação periódica de desempenho que sendo reiteradamente insatisfatório possa levar o servidor estável à demissão.
Nas mazelas da administração pública em todos os níveis, a generalidade dos ‘cargos em comissão’ são portas abertas para os malsinados cabides de emprego para a prestação de serviços estranhos à função, como é rotineiro em gabinetes de parlamentares. O fenômeno tornou-se rotineiro na cultura política de aparelhamento do Estado, onde não há desempregados.
Estadão: O sr. vê algum ensinamento na Lava Jato?
Dotti: Há determinados acontecimentos no mundo social que permitem a formação de uma consciência coletiva para a proteção de determinados bens e interesses jurídicos. Por exemplo: proibição de fumo em determinados lugares ou ambientes; proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado; proteção do consumidor, com o funcionamento dos Procons em grande parte do País;  a proteção moral e física da mulher: a Lei Maria da Penha; o respeito da população pelo Estatuto do Idoso; a Lei da Ficha Limpa.
A sociedade civil organizada poderá manifestar-se contra a escolha de políticos profissionais para assunção de cargos que lhes permita manter a cultura deletéria da distribuição política de funções públicas.
Pretendo repercutir esta tese em minha exposição durante o julgamento do dia 24. A população certamente aprovará.
A Operação Lava Jato constitui uma revolução copérnica nos usos e costumes da criminalidade dos respeitáveis (white-collar crime) porque o fenômeno da delação, que a lei chama de colaboração, produz um terremoto de grande potência nas associações criminosas porque seus agentes perdem a mais preciosa garantia de impunidade: a  omertà.
A Operação Lava Jato ganhou o status de um relevante interesse público. Como acentuou várias vezes o procurador Deltan Dallagnol, a Operação Lava Jato dependerá, para sua efetivação no controle da criminalidade econômica e financeira, do próximo presidente da República a quem compete manter ou frustrar o interesse da sociedade.
Estadão: O julgamento vai além do processo MPF/Petrobrás X Lula e outros réus no caso triplex. Ele tem relação direta com as eleições deste ano e com os próximos 4 anos do País. O sr. acredita que Lula será candidato a presidente e pode ser empossado?  O que pensa sobre isso, do ponto de vista legal e do ponto de vista do cidadão?
Dotti: Sinceramente, não tenho condições de prognosticar a situação do ex-presidente da República a partir de seu julgamento pelo Tribunal Federal da 4ª Região.
Estadão: O sr. acredita em decisão unânime na turma?
Dotti: Permita-me a omissão. A minha longa carreira na advocacia ensinou-me que mesmo nas causas onde há mínimo litígio, a decisão judicial sempre é uma incógnita. A percepção do problema e a perspectiva de sua solução saem de minha cabeça para pousar em outra.