domingo, 21 de janeiro de 2018

Um dos favoritos ao Oscar, The Post, de Steven Spielberg, estreia nesta quinta no Brasil

Eduardo Graça - O Globo


NOVA YORK — Quando finalmente leu, depois de insistentes pedidos de sua amiga Amy Pascal, ex-todo-poderosa executiva da Sony, o roteiro de Liz Hannah, uma neófita em Hollywood, sobre os bastidores do escândalo político conhecido como “os papéis do Pentágono”, Steven Spielberg arregalou os olhos: a história não parecia tratar exclusivamente do governo de Richard Nixon (1913-1994) e do desastre da Guerra do Vietnã, mas também dos dias de hoje e da cruzada do presidente Donald Trump contra a mídia.

Sua reação seguinte foi a de interromper a já adiantada pós-produção da ficção científica “Jogador número 1”, que estreia em março e é passada em um futuro distópico. E de voltar, a toque de caixa, aos anos 1970, sempre com um olho na atual Casa Branca, para filmar “The Post — A guerra secreta”, com Meryl Streep na pele de Katharine Graham (1917-2001), a dona do “Washington Post” à época, e Tom Hanks na do então editor-chefe do diário, Ben Bradlee (1921-2014). O longa estreia nesta quinta no Brasil.

— O filme é sobre a importância da liberdade de imprensa para a democracia americana, lá atrás e agora. O fato é que ela hoje se segura por um fio na boca de um desfiladeiro, em situação ainda mais precária do que a da Era Nixon. Querem nos fazer acreditar não haver diferença entre fato e crenças, e não aceito isso — diz Spielberg.

Os paralelos com Trump não impediram o diretor de contar de forma didática o que qualifica de maior ataque às liberdades civis dos americanos desde a Guerra Civil (1861-65). Em junho de 1971, o “New York Times” começou a publicar trechos de documentos secretos — os “papéis do Pentágono” (leia mais ao lado) — encomendados pelo próprio secretário de Defesa Robert McNamara (1916-2009, papel de Bruce Greenwood) e vazados ao jornal por um ex-funcionário do Departamento de Defesa, Daniel Ellsberg (Matthew Rhys).


  • "A montanha dos sete abutres" (1951)
Os estudos revelavam que a Casa Branca mentia à opinião pública sobre os objetivos e a precariedade, para os americanos, do conflito. O governo entrou na Justiça e impediu o jornal de seguir a série de reportagens, mas o “Post”, sob a batuta de Bradlee e a anuência de Graham, interessados em aumentar o peso nacional de um diário até então regional, arriscou possibilidades reais de prisão em nome da liberdade de imprensa.

A querela foi parar na Suprema Corte e, em uma das cenas mais spielberguianas do filme, o espectador acompanha o resultado da batalha de dentro da redação do “Post”, com a reação emocionada de repórteres e editores. Três anos depois, sairiam daquelas mesmas máquinas de escrever as reportagens de Bob Woodward e Carl Bernstein que jogariam pá de cal no governo Nixon, retratadas por Alan J. Pakula em “Todos os homens do presidente”.

Estrelado por Dustin Hoffman e Robert Redford, o longa é considerado por especialistas o melhor já feito sobre jornalismo pelo cinema americano. A cena derradeira de “The Post” funciona como capítulo imediatamente anterior ao do filme de 1976.





— Adoraria que as pessoas saíssem de “The Post” e corressem para ver “Todos os homens (...)” — diz Spielberg, que reage com humor ao ser perguntado se toparia fazer uma sessão dupla na Casa Branca, com o presidente na plateia: — Sabemos que provavelmente não terei esta oportunidade, né?

Em “The Post”, Nixon aparece no exato cenário onde gravou secretamente conversas de gabinete que apressariam seu fim político em meio ao escândalo de Watergate. Essas cenas não apareciam no esboço original de Liz Hannah e foram incluídas na versão final, a pedido de Spielberg, por Josh Singer, vencedor do Oscar de roteiro original por “Spotlight — segredos revelados” (2015), outra ode ao jornalismo.

Pois é impossível não relacionar os adendos de Singer com os ataque de Trump ao que ele chama de “imprensa falsa”, marco do primeiro ano de seu governo.

Avesso a sutilezas estilísticas, o diretor pontua a parte final do filme com Nixon ao telefone, anunciando o banimento dos repórteres do “Post” da Casa Branca. No ano passado, CNN, “NYT” e o próprio “Post” foram impedidos, por vezes, de comparecer ao despacho diário na Casa Branca por “faltarem com a verdade”, na opinião da atual administração.

Desde a posse do republicano, o “Post”, hoje parte do império de Jeff Bezos, o sujeito mais rico dos EUA e criador da Amazon, sai com a tarja, em suas edições impressa e on-line, “a democracia morre na escuridão”.

— Quando ouvi as fitas de Nixon foi impossível não pensar nos dias de hoje. A paranoia, a percepção da imprensa como inimiga e uma noção muito particular do que é democracia me pareceram, digamos assim, familiares — diz Singer.

“MIX DE 'BIG BROTHER' COM ANARQUIA”

Spielberg leu o roteiro original em fevereiro e começou a filmar em junho:

— Não tenho dúvidas de que as verdades de 1971 são relevantes pra nós, hoje. Nixon queria castrar o Quarto Poder. Meu filme é, no fim, sobre a coragem e o patriotismo de Katherine e de Ben. Ambiciono entrar de cabeça no diálogo mais importante em meu país hoje, embora tenha certeza de que este seja um tema presente em outras democracias liberais como o Brasil — diz o diretor.

Meryl Streep concorda:

— Sem uma fonte crível de informação, ficamos reduzidos a comprar mitos vendidos pelos governos. O filme trata da tentativa de algo mais grave do que a simples divulgação de mentiras: a apropriação da verdade. É contra isso que precisamos nos debater hoje.

Em sua quinta parceria com Spielberg, Hanks encarna um Bradlee ligeiramente diferente do de Jason Robards (1922-2000), seu colega de elenco em “Filadélfia” (1993) e que levou o Oscar de melhor ator coadjuvante em “Todos os homens do presidente”.

O editor de Hanks é mais sofisticado e não escapa de uma discussão ética com Graham sobre sua proximidade com os Kennedy. A publisher lembra que fontes, por mais próximas que sejam, não podem pautar a linha editorial de um jornal sério.

— Quando a imprensa é ameaçada, ficamos nas mãos, como agora, de um mix de “Big Brother” com anarquia — diz Hanks: — A imprensa pode até tratar de temas com cinismo, mas sem ser, ela própria, cínica, jamais.

AS 7 MIL PÁGINAS QUE ABALARAM NIXON

Em 1967, o então secretário de Defesa americano, Robert McNamara, constituiu uma força-tarefa para elaborar um relatório, “enciclopédico e objetivo”, sobre as ações americanas no Vietnã, da qual fizeram parte 36 analistas. Daniel Ellsberg, que integrou o grupo, primeiro vazou parte do conteúdo secreto (oficialmente intitulado “Relações EUA-Vietnã, 1945-1967 — um estudo preparado pelo Departamento de Defesa”) a senadores que se opunham à guerra.

Ao notar que nenhuma medida seria tomada, Ellsberg optou por mandar 43 do total de 47 volumes do relatório ao “New York Times”, em 1971, no que ficou conhecido como os “papéis do Pentágono”. Os quatro documentos restantes, chamados de “Volumes Diplomáticos”, só foram divulgados em 1991. No total, são 48 caixas, com 7 mil páginas, e todas estão disponíveis na internet desde 2011.