quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

"O carnaval do carnaval", por Roberto DaMatta

O Globo


Na Quarta-feira de Cinzas de 2015, escrevi uma crônica sobre o carnaval na qual o famoso brasilianista Richard Moneygrand declarava:

— Acho que vocês enterraram o carnaval!

Naquele ano, o professor Moneygrand argumentava que o carnaval como um ritual de abandono programado das rotinas — e como festa de mascaramento da pobreza — iria sofrer abalos num país despertado pela comunicação eletrônica, cada vez mais consciente de suas assombrosas desigualdades sociopolíticas, ao lado de uma endêmica corrupção ironicamente efetuada em nome dos pobres e oprimidos.

— Como é possível continuar “brincando” fantasiado de deuses que imitam o luxo de uma saudosa realeza à brasileira? Como é possível — provocava o professor — exibir-se em carros alegóricos extraordinários em cidades carentes de segurança, transporte, saneamento, educação, saúde e administradores honestos? De onde sai essa alegre loucura quando obras públicas desmoronam, há uma batalha entre traficantes e policiais e balas perdidas fazem vítimas rotineiramente? Da profundeza deste indizível sofrimento, o riso carnavalesco-rabelaisiano não seria, ele próprio, a ironia do porco comendo gulosamente o seu toucinho?

— É preciso — continuou Moneygrand — entender essas festas que promovem o turismo e geram renda ao mesmo tempo que compensam a pobreza e a desigualdade. Nas entranhas das festas, há os aproveitadores, e todos sabem como contraventores usam o carnaval como instrumento de legitimação. Num país onde reina a ambiguidade do legal com o delituoso seria o carnaval o fiel emblema dessa aliança? Sei que tudo isso é teoria e que estou complicando algo muito simples... Mas seria absurdo dizer que o carnaval é uma festa antiga num mundo moderno?
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Quando, em 1979, publiquei “Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro”, eu mencionei o elo entre transgressão e carnaval. O carnaval licencioso festejado num Brasil do proibido seria uma contradição em termos. Uma transgressão com hora para começar e terminar. Neste Brasil monárquico e escravocrata, a igualdade era lida como “folia” ou loucura racionalizada pelas normas do sistema. Liberdade e igualdade eram transgressões permitidas só no carnaval. Mas o que ocorre quando instituímos a igualdade republicana?

No fundo, carnavalizar é revolucionar, mas fico somente nisso porque o tema não cabe na crônica.
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Não estranho que a festa tenha sido, como previa o brasilianista, politizada neste travoso ano de 2018, no qual o país tem um ex-presidente condenado, governadores presos, a vida se desmanchando numa avalanche de violência, e o prefeito-bispo da cidade governando por ausência (por motivos religiosos, ele não pode nem ver o carnaval...).

De fato, onde estaria a “loucura” do carnaval se o cotidiano já havia enlouquecido? Como inverter carnavalescamente o mundo no Sambódromo se o mundo real já estava de cabeça pra baixo? Seria, com efeito, surpreendente que o espirito carnavalesco amante do grotesco e da transgressão não fizesse essa irônica teatralização da “vida como ela é” neste Rio de Janeiro que virou uma Pompeia sem Vesúvio.

Quando algumas escolas de samba apresentaram o seu teatro de horrores numa festa da alegria, surge a pergunta que não quer calar: até quando vamos misturar meios e fins? E comer o pão antes de plantar o trigo?
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A politização não é nova. Ela foi realizada em tempos autoritários pela Beija-Flor e pela Vila Isabel nos anos 80. Isso para não falar dos milhares de carnavalescos anônimos que, em bloco ou solitariamente, parodiavam freiras e padres pecadores, generais covardes, machões femininos e falsos profetas, presidentes e políticos ladrões.

O que chama atenção neste desfile foi a politização sem a troça e em pleno regime democrático. Não era mais um protesto dos fracos contra os fortes (como no regime militar), mas uma tomada de posição. Nada contra, desde que todas as posições sejam exibidas. Caso contrário, o desfile vira manifestação partidária, e se extingue o riso satírico que os poderosos ou a desgraça suportam. Sem a burla que permite rir de nós mesmos, corremos o risco de enterrar o carnaval tal como até agora o fabricamos.

Roberto DaMatta é antropólogo