quinta-feira, 15 de março de 2018

"Quem consome a gordura patropi", por Ascânio Seleme

O Globo

Não pagar imposto, sonegar ou achar um mecanismo para reduzir a carga fiscal virou mania nacional. Todo mundo quer tirar casquinha do generoso Estado brasileiro


Política social se faz com dinheiro público usando-se mecanismos como a renúncia fiscal ou a desoneração. Significam a mesma coisa, são produtos, serviços ou atividades que ganham isenção ou redução de impostos transferindo para outros a sua parte no pagamento das contas nacionais. Normalmente, esse custo é arcado pelo contribuinte regular. Seja pela redução da qualidade dos serviços prestados, seja pelo aumento dos impostos que recai sobre seus ombros. As renúncias fiscais somadas alcançaram a extraordinária cifra de R$ 285 bilhões no ano passado.

A projeção para este ano eleva o valor para R$ 320 bilhões. Em 2006, as desonerações somavam R$ 77 bilhões. Por vezes, não poucas, desonerações significam atendimento de pressões políticas de setores organizados da economia. Não pagar imposto, sonegar ou achar um mecanismo para reduzir a carga fiscal virou uma mania nacional. Todo mundo quer tirar uma casquinha do generoso Estado brasileiro. Muitos conseguem nacos importantes da gordura patropi.

Existem diversos tipos de renúncia e regimes fiscais. Muitos são decretados em razão de políticas sazonais. Alguns deles escondem critérios políticos eleitorais, como os que a ex-presidente Dilma Rousseff criou em 2013 e 2014, de modo a manter empregos artificialmente em setores da indústria e obter ganho eleitoral na sua reeleição. No total, custaram R$ 458 bilhões as desonerações concedidas nos cinco anos de Dilma.

Das desonerações regulares, a maior é a do Simples Nacional, que contempla empresas com receita bruta anual de até R$ 3,6 milhões. No ano passado, R$ 67,7 bilhões deixaram de ser arrecadados em razão desta modalidade de desoneração. Em segundo lugar, chegam praticamente empatados o regime especial para as empresas sem fins lucrativos e a Zona Franca de Manaus, que deixaram de recolher em 2017, respectivamente, R$ 24,5 bilhões e 24,2 bilhões.

Criada em 1967, a Zona Franca teve recentemente sua vigência prorrogada até 2073. Será a mais duradoura exoneração fiscal da história e ao seu término terá sobrevivido incríveis 103 anos. Nenhuma política de incentivo econômico, que serve para reposicionar um setor ou uma região, pode durar tanto tempo. Nesse caso, deixa de ser incentivo e vira benefício. Benefício que alguém tem que pagar.

Os seus defensores alegam que, além de induzir a economia regional, ela gera empregos. Segundo dados da Superintendência da Zona Franca (Suframa), o polo industrial de Manaus que recebe os incentivos tem 85 mil pessoas empregadas. Significa, numa conta simples, que cada emprego custa aos cofres públicos R$ 284.705,88. Para se ter uma ideia do tamanho disso, basta ver que o PIB per capita do Amazonas é de cerca de R$ 22.500.

Se você comparar estes dados com os do Simples Nacional, vai ter um choque. As empresas optantes do Simples empregam 18,8 milhões de pessoas. Levada em conta a renúncia fiscal deste modelo, cada um destes empregos custa R$ 3.563,82 por ano ao Tesouro. Em outros números, pode-se dizer que cada emprego da Zona Franca vale por 79.737 empregos gerados pelo Simples Nacional.

Tem muitos outros casos bem importantes, mas um dos mais extraordinários é o da Política Nacional de Informática, de 1984, que criou a famosa reserva de mercado para produtos de informática produzidos no Brasil. O país patinou durante anos, já que a lei praticamente inviabilizava a importação de computadores e peças. Em 1991 seus efeitos foram parcialmente suspensos, permanecendo em vigor as reduções do IPI para equipamentos fabricados no país. Se forem da região da Amazônia ou do Nordeste, as reduções serão maiores. Em 2014, esse incentivo foi prorrogado até 2029.

No caso das entidades sem fins lucrativos, como igrejas, escolas, clubes, associações de classe, há manuais disponíveis na internet que ensinam como montá-las. Cumpridos os trâmites legais, em poucos dias o interessado será titular de uma entidade beneficente e poderá emitir notas sem precisar descontar tributos como a CSSL, o IR da Pessoa Jurídica, o PIS ou a Cofins. Foi isso o que fez a gangue dos presídios do Rio desbaratada na terça-feira, criou uma sociedade sem fins lucrativos para se apropriar do dinheiro público. Neste caso, o dinheiro roubado ainda ganhava isenção de impostos.

Ascânio Seleme é jornalista