domingo, 22 de abril de 2018

"Golpe ou impeachment, ainda", por Otavio Frias Filho

Folha de São Paulo


Em abril de 1950, Getúlio Vargas foi lançado candidato a presidente. No mesmo mês, o Congresso aprovou a lei 1.079, que regula o impeachment. Seu propósito ostensivo era tornar destituíveis governantes irresponsáveis, como Adhemar de Barros em São Paulo. Mas basta conhecer o teor da lei para concluir que provém do repúdio à ditadura do Estado Novo e do receio de que ela pudesse se repetir.
Ali são listados, como crimes de responsabilidade, dezenas de motivos para impedir um presidente.
Basta que tenha atentado contra "a probidade na administração", provocado "animosidade entre as classes armadas" ou procedido de "modo incompatível com (...) o decoro do cargo". Até "negligenciar (...) a conservação do patrimônio nacional" é razão suficiente. Atentar contra "a lei orçamentária", também.
Em 1988, ao estipular motivos para o afastamento (artigo 85), a Constituição reiterou que entre eles está a violação da lei orçamentária.
Quando sobreveio o impeachment de Fernando Collor, em 1992, o STF decidiu que a lei 1.079 era constitucional e, portanto, válida. Essa decisão foi confirmada há dois anos, quando começou o impeachment de Dilma Rousseff com a autorização dada pela Câmara dos Deputados (17/4/16).
A presidente foi acusada de praticar "pedaladas fiscais" (operações nas quais bancos estatais, na prática, emprestam ao Tesouro, o que é proibido) e de editar decretos de crédito suplementar sem autorização do Congresso.
Seus antecessores praticaram pedaladas, mas as do governo Dilma foram em escala ao menos dez vezes maior. Como se recorda, o mérito da questão —fraude orçamentária— era pretexto técnico, controvertido e quase incompreensível para a maioria das pessoas.
Do ângulo processual, a deposição ocorreu de acordo com a lei. A presidente teve amplo direito de defesa, a licença pela Câmara e o julgamento pelo Senado aconteceram sob supervisão de um Supremo independente. Eram necessários dois terços de ambas as Casas para afastá-la de vez. Na Câmara, 74% votaram contra ela; no Senado, 76%.
O governo entrara em colapso, seu isolamento político era reflexo da perda de sustentação na sociedade. Pesquisa Datafolha de abril de 2016 mostrava que 61% eram favoráveis ao afastamento (embora 33% fossem contrários). O mesmo instituto, que mede manifestações há décadas, revelava que os atos pelo impeachment foram as maiores concentrações políticas da história brasileira.
O impeachment é um remédio político, mais que jurídico, que os criadores da Constituição americana foram buscar, como quase sempre fizeram, na Roma antiga e nos costumes britânicos. Por isso quem julga é o Senado, não a corte suprema. Conforme a tirada de Benjamin Franklin, que acontecimentos posteriores tornariam funesta, o impeachment é uma forma de se livrar de um mandatário que se revela detestável ("obnoxious") sem ter de matá-lo.
Hélio Schwartsman salientou neste jornal, na época do afastamento da presidente, que há algo de tautológico no dispositivo, como se sofresse impedimento quem não conseguisse evitá-lo.
O governante incapaz de conservar o apoio de ao menos um terço do Parlamento não merece governar e provavelmente já não governa mais. O impeachment seria a consumação legal desse fato.
É improvável que ângulos e matizes como os ventilados acima sejam levados em conta nos cursos sobre o "golpe de 16" que passaram a despontar. A liberdade de cátedra é ampla o bastante para autorizar muito disparate, sobretudo nas ciências humanas; o caso dá oportunidade aos alunos de exercitar seu senso crítico ao discernir o que é pesquisa, o que é debate e o que é mera propaganda.

sala de aula
Primeiro dia de aula da disciplina "Tópicos especiais em ciência política: o golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil", com o professor Luis Felipe Miguel, na Universidade de Brasília (UnB). - Pedro Ladeira/Folhapress
Se o que move esses historiadores apressados é a sociologia da deposição, a tabela anual do crescimento econômico é um bom começo. Sempre que há dois anos consecutivos de crescimento negativo, o governo cai. É o que acontece em 1981-3 (-6,3%), levando ao fim da ditadura dois anos depois. É o que volta a ocorrer em 1990-2 (-3,8%), com Collor. E novamente no biênio 2015-16 (-7%), com Dilma.
O militante pode gritar "golpe!" com a legitimidade de quem está engajado na luta política, mas o historiador obedece a outro tempo, outros critérios. De seu ponto de vista, o eixo da política se desloca para a direita, num movimento geológico profundo, que ultrapassa o âmbito local e se apresenta como contraglobalização em escala mundial. Esse é o verdadeiro "golpe".
Otavio Frias Filho
Diretor de Redação da Folha